Como parte da cobertura do ArchDaily Brasil na Bienal de Veneza 2016, apresentamos uma série de artigos escritos pelos curadores das exposições e instalações à mostra no evento.
Das dezenas de artigos sobre arquitetura e urbanismo que contribuí para o Jornal Korea Joongang Daily, foi o intitulado de "The FAR Game" que recebeu a maior resposta dos leitores. Enquanto que a FAR (Floor Area Ratio "Taxa de Área de Piso") aparenta ser um jargão técnico dos profissionais, parece que quase todos os coreanos sabem o que é, ou já ouviram falar sobre isso. Se você digitar yong-jeong-nyul (용적률, a palavra coreana para FAR) em motores de busca coreanos, um fluxo interminável de notícias, artigos e comentários aparecerão. A palavra fala do apetite para espaços de vida em um ambiente hiper-denso, bem como o desejo por qualquer meio possível, seja por planejamento e táticas adequadas ou através de truques e obscurecimento. Ela toca tanto os ricos como os pobres, como eles gerem suas vidas juntos e em torno do tecido urbano. Ao ler esse artigo, onde eu havia afirmado que, sem dúvidas, é a FAR que impulsiona o caráter arquitetônico das cidades coreanas, um renomado pesquisador urbano me disse que eu havia acertado em cheio.
Ao ver que Alejandro Aravena propôs o tema “Reporting from the Front” para a Bienal de Veneza, meu pensamento imediato foi que o jogo em torno da FAR, o "FAR Game" era a verdadeira batalha sendo travada na linha de frente da arquitetura coreana. O fato é que 99% dos arquitetos coreanos devem jogar esse jogo para sobreviver. Um arquiteto raramente recebe uma comissão, a menos que consiga convencer os clientes de que sua proposta de projeto tem grandes áreas de piso mais rentáveis que seus concorrentes.
Na Coreia, a maioria dos clientes e proprietários de terras estão pagando para a quantidade invisível da edificação, e não a qualidade visível da arquitetura. Os edifícios em si, muitas vezes, não são valorizados no mercado imobiliário. O tempo de vida médio de uma edificação é mais curta do que a de um ser humano. Se um novo edifício pode proporcionar um aumento na FAR, então são feitas demolições e reconstruções. Não é incomum ver banners comemorativos quando um edifício falha no teste de estabilidade estrutural, porque isso significa que a demolição será aprovada.
O Jogo da FAR é particularmente relevante para a Coreia do Sul devido à sua história recente de crescimento econômico sem precedentes. Em 1962, quando a primeira Lei da Construção Civil e Planejamento Urbano foi estabelecida, o PIB da Coreia do Sul per capita era inferior a U$ 100. Após 50 anos, o PIB cresceu mais de 300 vezes, enquanto os preços da terra multiplicaram-se mais de 600 vezes. Isso levou a um "crescimento comprimido" e hiper-densidade em pólos industriais urbanos do país, sendo a região de Seul o principal exemplo. Combinado com os regulamentos de construção baseados nos lotes e uma textura urbana irregular e heterogêneo, a arquitetura urbana coreana não tem sido capaz de escapar da unidade desesperada e complexa para aumentar espaços de vida que caracterizam o jogo da FAR.
É verdade que uma identidade clara para a arquitetura coreana foi borrada no meio da luta entre agendas conflitantes: demolição versus regeneração, privatização versus nacionalização, estética versus praticidade. Mas sob todas estas considerações, o jogo da FAR sempre enfurece. É fácil recusar o Jogo como um sintoma da ganância sem escrúpulos, e talvez seja por isso que os teóricos e críticos raramente falem sobre isso abertamente. No entanto, a realidade é que, em vez de resistir a isso, os arquitetos na Coréia devem acolher a tensão entre o desejo da área máxima de pisos e as regras de construção que restringem isso, e usar essa tensão para despertar a criatividade e a inovação.
A Exposição FAR Game no Pavilhão coreano é projetada para acompanhar as mudanças no jogo após a crise econômica mundial de 2008, e destacar os melhores exemplos de respostas criativas para as demandas da FAR. Nossa equipe de seis curadores analisaram os dados e trabalharam para inscrever participantes e selecionar materiais que ilustram não apenas as duras realidades que enfrentam a arquitetura e as cidades coreana, mas também as maneiras que a nossa indústria está fazendo pequenas mudanças para uma vida melhor, como propõe Aravena.
Antes de me inscrever para esta curadoria, conversei com um amigo próximo, que me encorajou a ir adiante se eu fosse capaz de apreciar o processo e não ser pego pela tentativa de impressionar as pessoas. Isso me fez pensar na sátira da vaidade moderna de "O Vencedor Está Só", ambientado no Festival de Cannes. A própria Bienal de Veneza poderia ser entendida como uma feira de vaidade para círculos fechados de pessoas cada vez mais destacados da realidade da vida cotidiana. No entanto, eu opto por vê-la como uma plataforma para diferentes perspectivas de vozes não ouvidas. Represento meu país aqui não para buscar o reconhecimento, mas para abrir uma discussão com profissionais da arquitetura, bem como o público interessado sobre o porquê o FAR Game é relevante na Coreia e na arquitetura em geral.
O FAR Game é uma espécie de auto-retrato da Coreia. Enraizada no nosso passado, continuará a exercer-se sobre o desenvolvimento da arquitetura na Coreia para o futuro.